Empresa de tecnologia pode precisar de transformação digital?

Joca Torres
7 min readJun 6, 2023

Resposta curta é SIM!

O fato de uma empresa ser de tecnologia, ou seja, ser uma empresa cujo produto é o software ou a tecnologia desenvolvida pela equipe de desenvolvimento de produto, não implica necessariamente que a empresa tem maturidade digital.

Ter maturidade digital significa ter uma cultura de produto digital onde a empresa aplica os 4 princípios que permitem desenvolver produtos digitais de sucesso:

  1. Entregas rápidas e frequentes: não dá para querer inovar e fazer novos produtos fazendo entregas mensais ou trimestrais de código.
  2. Foco no problema: entender bem o problema para só depois pensar em hipóteses de solução. Testar diferentes hipóteses para ver qual resolve melhor e mais rápido.
  3. Entrega de resultados: o que um time de desenvolvimento de produtos tem que entregar são resultados. Produto, app, feature, algoritmo não são o objetivo, são meios para entrega de resultado.
  4. Mentalidade de ecossistema: é o foco no cliente, só que turbinado. Toda empresa tem mais de um cliente, e é preciso entender esses diferentes tipos de clientes e suas relações.

Para ilustrar a necessidade de transformação digital mesmo em empresas de tecnologia, vou dar 3 exemplos:

Locaweb

Quando entrei na Locaweb em 2005, a empresa tinha cerca de 100 pessoas e a equipe de desenvolvimento de produto tinha cerca de 30 pessoas, o que é um bom tamanho. No entanto, o desenvolvimento de produto era feito de uma forma muito antiga, em cascata, com base em ideias de C-levels e de pedidos de vendas, sem conversa com o cliente.

Lembro-me de preencher um PRD (_Product Requirement Document_ ou Documento de Requisitos de Produto) ​​com todos os requisitos para um novo produto que planejamos lançar com base nas ideias dos C-levels. Após preencher todos os detalhes, o que demorei 2 meses para fazer, entreguei para a engenharia um documento de mais de 25 páginas, repleto de detalhes sobre o produto. A engenharia levou 5 meses para entregar o produto pronto. Durante esse tempo, sempre que eu perguntava como estava o desenvolvimento, a resposta que eu recebia era que o desenvolvimento estava indo como planejado e que eles estavam seguindo à risca o PRD. Quando ficou pronto, fui testar o produto e descobri que uma funcionalidade esperada não estava lá. Verifiquei o PRD para ver se eu havia esquecido de incluir essa funcionalidade específica, mas não, eu não tinha esquecido, estava lá. Então, conversando com os engenheiros, eles viram a documentação, não entenderam todos os detalhes da funcionalidade e, pela pressa de entregar, decidiram não incluir a funcionalidade.

Através desse exemplo fica bem claro que nossa maturidade digital naquela época era bem baixa. Conseguimos evoluir e aumentar nossa maturidade digital ao longo dos anos, mas este é um bom exemplo de empresa digital, cujo produto vendido pela empresa é o software ou tecnologia desenvolvida pela equipe de desenvolvimento do produto, mas com baixa maturidade digital que foi melhorando ao longo dos anos.

Aurum

Esta é a empresa de 2 bons amigos de faculdade. Formaram-se por volta de 1990 e, na época, criaram um produto para auxiliar os advogados no seu dia a dia. Como todo software da década de 1990, era um software _on-premise_, para ser instalado no computador de cada advogado.

Mais tarde, lançaram uma versão cliente-servidor onde os advogados podiam trocar informações pelo sistema e o trabalho realizado por cada advogado era armazenado em um servidor local.

Por volta de 2010 eles começaram a perceber a necessidade de migrar para a nuvem e eu os ajudei em um dos meus primeiros trabalhos de consultoria. O grande dilema que eles enfrentaram era: como colocar na versão na nuvem tudo o que foi criado ao longo de 20 anos de trabalho na versão cliente-servidor? Com certeza iria levar muito tempo e, muito provavelmente, o cliente não iria perceber nenhum valor, ou seja, não iria pagar a mais por esse novo software. A Aurum iria investir um monte de dinheiro para fazer um novo software que faria o mesmo que a versão cliente-servidor, e não teria como cobrar a mais de seus clientes para ter reotrno desse investimento. O que fazer?

Eles percorreram dois caminhos simultâneos que são duas ótimas estratégias para casos similares:

  • novo segmento: fazer um desenvolvimento web do zero, essa foi a decisão que a Aurum tomou em 2010 e que deu origem ao Astrea. Enquanto o produto principal da Aurum era um produto maduro, focado em grandes escritórios de advocacacia e departamentos jurídicos de grandes empresas, o Astrea tinha por foco os pequenos escritórios de advocacia e os advogados autônomos, que não precisavam de toda a complexidade do Themis. Isso permitiu criar uma versão mínima simples para ser lançada para um segmento bastante próximo do segmento que eles já atuavam, mas sem precisar ter toda a complexidade que produto maduro deles já tinha.
  • estrangulamento do legado: enquanto um time experimentava com o novo produto para o novo segmento, o Astrea, o produto vaca-leiteira, o Themis, tinha que ser modernizado. Isso foi feito utilizando a estratégia de estrangulamento do legado, que significa gradualmente mover pedaços do produtos da tecnologia antiga para uma tecnologia mais moderna. A priorização de que pedaço mover deve ser motivada majoritariamente por necessidades de negócio e do usuário. Sempre que houver a necessidade de implementar algo no legado devido a alguma necessidade de negócio ou para resolver algum problema de cliente, essa é uma excelente oportunidade de já fazer essa implementação fora do legado, em uma arquitetura de sistema mais moderna. Ao longo dos anos é possível reduzir o legado substancialmente até eventualmente ele deixar de existir. No caso da Aurum, esse processo de modernização do Themis durou quase 20 anos. Eles começaram em 2005 a versão web para que os advogados pudessem acessar os mesmos dados que usavam no escritório enquanto estivessem em suas viagens ou mesmo em casa.

Importante notar que ambas as estratégias têm o valor gerado para o negócio e para o cliente por princípio norteador da priorização. Não é a necessidade técnica que norteava as decisões, e sim as necessidades de negócios e do cliente. O foco é gerar valor de negócio e de cliente e aproveitar para fazer atualização tecnológica.

Na construção do Astrea, a prioridade era atender um novo segmento de mercado, os pequenos escritórios e os profissionais autônomos e, ao fazer isso, aprender com tecnologia de desenvolvimento de produto na nuvem. Com isso, uma nova linha de receita foi criada.

No estrangulamento da versão desktop do Themis, o objetivo sempre foi acompanhar e antever as necessidades do clientes, permitindo que os clientes pudessem acessar seus dados de qualquer lugar, aumentando assim o engajamento e a retenção dos clientes.

Se você quiser se aprofundar na jornada de transformação digital deles, confira esta entrevista.

A Aurum é outro bom exemplo de empresa digital, cujo produto vendido pela empresa é o software ou tecnologia desenvolvida pela equipe de desenvolvimento do produto, mas com baixa maturidade digital que melhorou ao longo do tempo.

Gympass

Quando entrei no Gympass, em meados de 2018, a empresa já contava com 800 funcionários, e tinha presença em 14 países. No entanto, toda a sua equipe de desenvolvimento de produto, incluindo engenheiros, designers de produto e gestoras de produto, tinha apenas 30 pessoas, ou seja, menos de 4% da empresa estava focada em desenvolvimento de produto. O impacto dessa equipe muito pequena em relação ao tamanho da empresa era que, naquela época, muitas das tarefas do dia a dia com clientes e parceiros tinham que ser realizadas manualmente.

Por esse motivo o Gympass tinha uma equipe de operações enorme para dar conta de todas essas tarefas manuais. Quanto mais vendia, mais pessoas eram necessárias no time de operações. E o aplicativo ainda era uma versão webview.

O C-level e o conselho reconheceram a necessidade de investir no digital para escalar a empresa, e essa equipe cresceu consideravelmente para cerca de 250 pessoas, que automatizaram muitas das tarefas de operações manuais e entregaram e evoluíram um aplicativo totalmente nativo.

Este é um exemplo interessante de empresa tradicional nascida digital, que vende um benefício corporativo aos seus clientes para que eles possam oferecer aos seus funcionários acesso a uma rede de dezenas de milhares de academias e estúdios, e que possuíam uma maturidade digital baixa. Isso normalmente acontece quando os fundadores de uma empresa nascida digital que está usando o digital para melhorar um negócio tradicional têm pouca ou nenhuma experiência anterior com produtos digitais. Se não trouxerem algumas pessoas com essa experiência para a equipe de founders, há boas chances de que a maturidade digital dessa empresa seja baixa.

Natureza da empresa vs maturidade digital

Quando avaliamos uma empresa do ponto de vista de uso das tecnonologias digitais, devemos pensar em duas dimensões. No eixo X pensamos na natureza da empresa, se ela é digital, tradicional ou tradicional nascida digital, e no exio Y avaliamos a sua maturidade digital, conforme a imagem abaixo:

Matriz natureza da empresa vs maturidade digital

Como melhorar a maturidade digital da sua empresa?

Essa é uma excelente pergunta é a motivação que tenho para escrever o meu quarto livro, ajudar as pessoas a aumentarem a maturidade digital de suas empresas. Já tenho 2/3 do livro pronto. Inclusive, esse artigo faz parte do livro! (=

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Joca Torres

Workshops, coaching, and advisory services on product management and digital transformation. Also an open water swimmer and ukulelist.